Artigo de Opinião escrito por Miguel Gomes- Escritor
Já só se deslocava à agência bancária a custo, não pelaidade que, inexoravelmente, se encostava a si com o prenúncio temporizado de um encontro com os limites da Natureza, a mesma que sempre lhe foi benéfica, na monda, na ronda e na parceria nos pastos de montanha, mas pelocada vez mais tecnológico discurso dos funcionários. Para lá do balcão tinham ido já os que, reformados, a gosto ou a suplício, o recebiam e por entre palavras, prolongadas depois no balcão de madeira pegajosa da tasca, entre copos que deixavam impressas e imprimidas os bojões redondos por onde a vida se emborca, lá lhe preenchiam um impresso, ora no papel, ora no computador, com o barulho das teclas, tac, tac, tac, tac, a fazerem a vez dos dedos grossos e gretados a rodearem a caneta como quem coloca um cavaco na lareira. Nunca necessitara da impressão digital, agora chamavam-lhe dados biométricos, nem de comprar um telemóvel daqueles que se mexe no ecrã. O que ele tinha era bem bom e até dava para fazer de lanterna quando, confiando nos sentidos, se desorientava se um soco derrapasse nas lousas gastas do tempo a correr contra ele mesmo.
Com a malta nova, igualmente educava, entendia-se pouco. Não era apenas a barreira da idade, nem as unhas tratadas em salão de manicure, a pelugem devidamente aparada nas sobrancelhas, entre elas, nas orelhas e nos cortes alinhadíssimos do cabelo. Ele, que sempre se habituou a escanhoar a cara no lavatório de ferro, com a toalha ao ombro e o espelho entalado entre duas pedras da parede, achava aqueles preparos modernos, necessários talvez, mas ele era gente simples e despreparada para um mundo que não lhe parecia ter lugar para pessoas que apenas sabem saborear o tempo, como se a vida fosse um longo copo de amêndoa amarga, forte, mas doce, a quem sabendo dosear a bebida, facilmente se levava daqui até ali com a ternura morna dos passos aquecidos pelo próprio chão.
Quando se decidiu a fechar a conta bancária porque só a utilizava para receber a reforma, tentaram vender-lhe um plano qualquer de poupança ou reforma. Falaram na facilidade do cartão através do qual podia levantar o dinheiro que quisesse quando desejasse e, até, fazer pagamentos. Nem precisava de ir à agência falar com os funcionários! E ele, já urdido pelos dias e por uma dor de lado, ocultada na consulta com o médico de família, sorriu e disse que pagava as compras com aquilo que podia dar no momento. Foi no sorriso irónico do funcionário e no olhar enternecido do gerente da agência, chegado por detrás dele colocando-lhe a a mão no ombro, que percebeu: este mundo onde vivia há muito cessara de existir e, sem mais, sorrindo educadamente, virou costas, saiu pela envidraçada porta, colocou a boina na cabeça e virou à direita, no caminho por onde sempre levara o gado, sem ninguém estranhar que ia sozinho, pastor de si mesmo. Encontraram-nos mais tarde, encostado a umcastanheiro, sentado com o cajado no colo e um sorriso feliz, tinha-se deixado de viver porque mais não quis.