Artigo de opinião escrito por Nuno Pires- direção do Estabelecimento Prisional de Bragança 

Falar ou escrever sobre o Entrudo, os latos, os caretos e os casamentos, leva-me a recordar um passado rural com que me identifico, que vivi com VIDA, entusiasmo e alegria exercida. Vivências da meninice, da adolescência e da juventude, que não esqueço, porque no seu encanto me fizeram sonhar, dormir, viver e acordar, sentindo a vida de forma partilhada, nos múltiplos aspetos do ciclo social, pessoal ou familiar, em que só a experiência potencia uma profunda introspeção reflexiva.

Na verdade, os tempos eram outros. Por sinal, bem diferentes dos que agora se vivem. Tempos idos, em que as circunstâncias da vida nos “obrigavam” a ser diferentes, mais próximos e personalizadamente mais interativos entre as “nossas” gentes. Sobretudo numa aldeia como a minha, para a qual chegámos a reivindicar, na sede de concelho/distrito, através de uma inédita manifestação, estrada, água, luz, pois o isolamento era deprimente. Mas, como a minha, havia muitas outras, infelizmente.

Era, com efeito, num contexto de transversal e inconsciente constrangimento, inserido no espaço e no tempo, que sustentadas na mais genuína e pura tradição, as atividades inerentes ao Carnaval e às demais, entusiasticamente se desenvolviam e alegremente aconteciam, sobressaindo o talento com o acontecimento. Sem nada mais que nos distraísse, mergulhávamos no exercício das nossas tradições, cultivando o imaginário sustentado em anteriores gerações, procurando evidenciar a pura fantasia que nos ajudava a entusiasmar e alegrar na preparação do Carnaval e no próprio dia. Isto, tendo em conta que o Carnaval é uma oportunidade interessante para “descarregar” emoções, pensamentos e sentimentos, cultivando o disfarce disfarçado para dar a cara, quando mascarado. Para dar vida à vida, depois de um período de tempo cinzento, frio e carregado. Para arejar, com a primavera a chegar, exaltando-se as tradições culturais e até gastronómicas de cada povo.

Neste meu pensamento, retroativo no tempo, quando nas aldeias não havia máscaras à venda, em que cada um construía a sua com materiais diversos, como expoente da criatividade, nos palheiros se faziam os Entrudos com roupas velhas, enchidos com palha, não lhe faltando referências e atributos para que na sua apresentação pública se apresentassem farfalhudos….em tudo!… Em que jamais se apresentaria um Entrudo importado, pois não havia dinheiro para o mandar fazer noutro lado. O Entrudo tinha a identidade de quem o idealizava, o construía e o enquadrava no contexto cultural da localidade. Até porque não seria bom virem de “fora” os Entrudos para se colocarem às portas das solteironas da terra. Bem bastavam os “Entrudos” que teimavam em se pavonear mascarados, por terras com as quais não se identificavam, nem nunca foram identificados.

Mas se o Entrudo era o centro das atenções no dia de Carnaval, não é menos verdade que o ato de tocar os latos, no período de tempo que o antecedia, fazia parte do ritual. Ainda me lembro, de andar de noite, nas rondas, tocando os latos pelas ruas da minha aldeia e das circunvizinhas, com lama e pedregulhos, mas que mesmo às escuras não constituíam obstáculos. Tratava-se de uma verdadeira festa quando surgíamos, inesperadamente, no silêncio da noite, tocando ruidosamente os latos nas aldeias vizinhas com requintada afinação e vaidade. Claro que, numa outra noite, não faltaria a reciprocidade, assim convivia a mocidade. No final de cada ronda, não faltava a grande fogueira no largo da aldeia, à volta da qual se comia e bebia em conformidade e de alma cheia.

Porém, para encerrar o ciclo carnavalesco, não poderia faltar o ritual dos casamentos, em que as moças solteiras mais prendadas da terra, dotadas e extravagantes eram motivo para grandes ajuntamentos metaforicamente amorosos.

Uma vez mais, as fogueiras eram pontos de reunião para se combinarem os casórios arregimentados com muito apurado sentido satírico, de humor e diversão. Depois, recorrendo aos “imbudes”, para que os protagonistas da voz se fizessem ouvir de um lado para o outro da terra, lá eram “cantados” os casamentos com as raparigas à escuta aguardando ansiosamente por esses momentos.

Sem dúvida que o Carnaval de antigamente era diferente, mais genuíno e afectuosamente divertido para a gente, outra gente!…

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