Artigo de Opinião de Elói Gouveia Santos – Responsável de Comunicação Empresa Pública Municipal

Uma figura maior da Ibéria – a tal jangada de pedra – teria festejado 100 anos nesta semana. Do alto do nosso amor pátrio somos tentados a dizer que é português. E é, em bom rigor. A questão que se coloca é a de saber se um génio tem pátria, pode ele ser agrilhoado pelas fronteiras dos países?  

Poucas vezes se terá visto uma tão grande influência de um autor. Por detrás da máscara sisuda está uma obra divertidíssima, escrita por alguém que é um mestre da ironia. Parece estranho imaginarmos que alguém com uma máscara de ferro possa ter sentido de humor. Entre os apreciadores da obra de Saramago, nos quais me incluo, discute-se qual será o melhor romance, ou se preferirem, a  magnum opus.

Os estudiosos aferirão por outras métricas. O leitor amador tem a vantagem de ser livre de escolher pelo simples facto de gostar disto em detrimento daquilo.  

A minha escolha recai na obra ” As Intermitências da Morte” pela desfaçatez, pela ousadia que Saramago teve de desafiar aquilo que inevitavelmente (nos) vence sempre. Mesmo sabendo da derrota anunciada não se coibiu de escarnecer. Como? Pensando.  

A espessura de pensamento é a marca de água de José Saramago. Discordemos ou concordemos com as abordagens, há algo que sempre marca presença nos escritos: a desconstrução, a reflexão. Sempre foi capaz de atirar pedradas ao status quo. 

Pouco agradecimento tem merecido Sousa Lara que, coitado, sem querer, catapultou a carreira de José Saramago. E aqui se lhe deixa a devida nota (de rodapé). 

Os herdeiros de Saramago (oficiais e oficiosos) são a prova de que a morte não atinge os maiores. E ei-los a continuar a obra do mestre. Não os livros, mas a obra: a arte de indagar, a audácia de pensar e de provocar a sociedade.  

Numa época em que é fácil achar que tudo vai mal, que nos sirva de ânimo a extraordinária geração de escritores: Afonso Cruz, Valter Hugo Mãe, Gonçalo M. Tavares, Lídia Jorge, João Tordo e tantos, tantos, outros. Só para mencionar alguns. Lê-los é remédio contra os confinamentos, daqueles que mais não são do que atavismos crónicos.  Devagar, devagarinho, vamos empurrando os emperrados neurónios. Só mais um pouco. Estendemos a pesada linha da imaginação. Só mais um pouquinho. 

A capacidade que certos autores têm de nos conquistar pelo pensamento, pela beleza do somatório das palavras é um dom.  

Mais do que estátuas ou honrarias, os escrevedores merecem ser lidos. Não existe, creio, maior homenagem.  

Empreendamos essa viagem. Terminemos com grande desfaçatez, roubando o genial autor que já cá não está para se defender: “A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo esses podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa”.

Slider