Artigo escrito por Miguel Gomes – escritor
Tinha estado virado para o mar, catraio entretido com o avançar e recuar das ondas a meus pés alvos, desconhecendo que nas minhas costas o ondular marinho dobrara terras, criara serras, eriçara pinheiros, sobreiros, oliveiras, carvalhos, castanheiros.
Ao ritmado canto das ondas caindo sobre elas mesmas, sobre o olhar ladino de um ou outro seixo, nas minhascostas a vida fazia-me frente. Eu apenas não sabia, inocente.
A maresia sobrava presa nas dunas, enterrava-me na areia, o mar como traquina borbulhara nos dedos a arfar. Pensara eu que me convidava a navegar.
Quando o Sol se pôs nas águas que pareciam ondular acima do próprio oceano, piscou-me o olho a saudade. Afogava a cidade. Quase caído ao firmamento, convida-me Febo em inusitado lamento, voltar costas à maré, sulcar novos horizontes e, eis, imponente, Trás-os-Montes.
Havia toda uma ilha imensa rodeada de um mar de pedras por onde falavam torgas.
Empurrado pelo tempo, cada planalto fizera-se monumento.
O silêncio incitava a ensejo dos dias a voltar, ir e regressar, sempre pelo mesmo carreiro por onde a chuva se fará ribeiro.
Despreparado, o corpo fugia na agrura de uma lavoura, escondido na lenda de uma moura, o calor atirado como uma onda, caído de costas no cansaço da monda. Ah, o corpo. Amadurecido. Que mulher um homem poderia ter sido. Ou o homem, dela parido, que a ela quer voltar. Ao borralho sabe-se o tempo amar.
Poderia ser assim o relato do meu mergulho no ameno entardecer rural, mas como explicar a paixão, se nunca se saiu do chão?
Ainda hoje me vi do lado de lá, duas vezes, agarrado a um vinhedo podando, sentado na beira dum fontanário a molhar a maçã que pedi emprestada num pomar.Encontrei-me nas duas vezes. Agora, saboreio a filha da macieira nas mãos meladas da videira. Aqui, Jesus teria nascido numa eira.
Na primeira vez que vi Trás-os-Montes fechei os olhos.Na segunda também.
E compreendo-me agora, sem muitas palavras.
Todos os rios debruçam-se ao mar. Eu navego-me diferente, sou da nascente.