Artigo de Opinião escrito por Miguel Gomes- Escritor
O quebrar gélido do solo a cada passo tomado faz da figura transmontana uma espécie de crepitar humano, que acompanha a vida ainda que seja durante esta manhã fria.
O bafo quente a cada expiração inunda a manhã, como se o percurso sobre a terra coberta de neve fosse um longo, não linear, percurso de um comboio numa paisagem ondular e sibilar, que muitos querem aplanar, findar.
Passo ante passo, rumo ao povoado, sem qualquer queixume além do lacrimejar glacial que se aglomera nos cantos dos olhos e lhe confere uma visão periférica digna duma paisagem polar, as mãos nos bolsos da samarra, o pescoço encolhido e recolhido para o tronco, os ombros alçados ao céu – como as orações, não é por isto que rezámos? para que nos ouçam celestialmente e nos alcem pela espádua a onde nunca deveríamos ter saído –de encontro ao pêlo animal do casaco, a boina cardada que encima a figura alta e alva finda a descrição do indescritível.
Os povoados esvaem-se, a simplicidade não consegue resistir à aridez do esquecimento, os muros estabelecidos entre terrenos de ninguém são a fronteira ténue que separam o litoral do torpor ou interior, vai dar tudo ao mesmo. Resistem, ainda, os que escutam a noite e apascentam o dia como um rebanho de estrelas num céu ora negro, ora ocre, ora sarapintado de verde olival, amendoal ou o mais colorido vinhedo. Não, aqui nada parece meter medo.
Por tudo isto continua a caminhar, o vapor de água quente que se eleva em névoa ténue faz dele locomotiva, forte, perene, movimentando-se além do tempo em percursos que ninguém permitirá roubar, ainda que furtem caminhos e os afundem sob cimento, pelos terrenos para lá do Marão, onde mandam os que lá estão.