Por: Miguel Gomes – Escritor
A serrania cerca-me e aperta o silêncio de encontro às árvores, as estrelas acentuam o brilho, engalanando-se, para que o incauto seja apanhado sensorialmente desprevenido ao mar de pontos luminosos que se ergue como uma vaga num mar nocturno.
Sem luzes ao redor, Trás-os-Montes, polvilhado de um picotado de oliveiras, sobreiros, castanheiros e rasantes vagas de erva seca, navega-se na crista de ondas de feno cujo vento, por vezes de uma intensidade que despenteia os sonhos que trago agarrados a mim, tenta marear.
Oh nunca dantes navegada superfície telúrica, por ti vou de mim até aí, onde cada sulco me rasga a imaginação (ou será recordação?) e o baldio faz-se a mim como um cobertor de serapilheira, com o qual me cubro se o alpendre de telhas estelares rarear-se ou eu, eventualmente, me esquecer de ser corpo, este tição que me amarra ao grilhão corpóreo, eu que tanto desejo o etéreo.
O cão, dormitando à sombra, entretém-se sonhando com o regresso do subalterno dono que deve ser, deduzo, quem por mim passou agarrado a um John Deere na imensidão de um pasto arrebanhado entre muros de granito, cujas mãos rudes, gastas, “entre o lodo e as estrelas”, moldaram para que nunca se separe o que é do que tem, até ao dia onde seremos, felizmente, tudo o que almejamos enquanto vivamos: ninguém.
Os largos, como medusas ondulantes na paisagem esquecida do oásis submerso, regam a vizinhança com matrículas estrangeiras onde os abraços se trocam por cotoveladas mascaradas, até que se perca de novo a humanidade e a vida se troque pela cidade.
Esquecido, nado de costas, flutuando aqui e ali, na paisagem morna dum planalto que me faz viver do físico parto à morte, o mote dum salto de fraga a fraga é o que verdadeiramente a mente nos afaga.