Por: Miguel Gomes- Escritor

Paro antes da passadeira onde um peão sôfrego passa a correr fugido do medo e vejo, no fundo dos degraus do agora vazio Centro Comercial, um casal ao redor de umas seis décadas de semeadura, roupas datadas dum século transacto e sacos plásticos pelo cotovelo,

Ele, no chão, afivela o capacete aberto, cinzento, cinzelado de uso, com uma tira de padrão escocês, puxando com firmeza sob o queixo para que não se solte o casco e vá cair, despencado, ladeiras da estrada abaixo.

O descanso bípede alavancava a motorizada num movimento ondulatório, ora na roda dianteira, ora na roda traseira, que termina quando a esposa, em pé no último degrau, pousa na grade sobre o farolim ciclope semi-esférico vermelho, atrás do banco remendado, uma seira com um losango pintado de verde escuro, onde os vimes partidos confirmam a presença inexorável do tempo.

Talvez o meu suspiro seja mais lamento que enfado. Acordo com o buzinar ligeiro do carro atrás de mim. Faço sinal para que me ultrapasse simulando que atendo uma chamada telefónica, apenas para admirar este acto duma cena que tem fugido ao meu olhar.

Afivelada a presilha, dá o outro capacete à esposa que com a mão grande, bolbosa, acama os cabelos antes de o enfiar na cabeça. Já o marido passou um esticador na ceira, ergueu a perna esquerda alçando-a sobre o banco da motorizada e, equilibrado, volta a chave na ignição, pé firme no kick e já o azulado fumo, habemus machina!, imprime movimento à atmosfera.

A esposa sobe para o apoio do passageiro e, pudicamente, com as mãos nos ombros do marido, iça a perna, senta-se e com a cara encosta às costas de napa do blusão curtido, sorri, abraçando-o enquanto o retrovisor mostra-me a estrada vazia.

O equilíbrio cinético de um datado casal confirma-me, apenas o amor é intemporal.

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