Por Miguel Gomes- Escritor
A sombra quente do alto Sol transmontano baixa-se ao interior terroso de cada transeunte, independente de se abrigar nas oliveiras, na projecção dos edifícios eirados e beirados, rondando carnivoramente as entradas dos estabelecimentos com ar-condicionado, que transpira, amedrontado, o frio forçado de quem não se sabe inverno.
No olhar de uma tarde febril, as nuvens encobrem, sempre que o podem, a tarde soalheira que escorre das frontes, embebe-se nos lenços de pano colocados sobre a testa, sorve as camisas coladas às costas ou sulca-se no chão poroso, transportado pela freima agrícola de quem se entrega à terra.
A larga tijela de barro é alguidar para côdeas e miolo de boroa, navegando sem mar numa sopa vermelha, tinta, cujas ondas se empurram contra o vidrado cerâmico, deixando a espuma rubra sombras de frescor. O açúcar polvilhado vai escurecendo e, depois, como um corpo entregue ao Pai, deixa-se imiscuir no finito universo carrascão de uma malga de sopas de vinho.
A colher calca a boroa, o vinho transborda para o convexo e Baco sorri nos ramos promissores onde pintalgam promessas de colheita ou, no pior, de desfeita. Uma e outra vez, almiscara-se boroa, vinho e açúcar, sempre a trindade, sagrada então com o que a vinha nos traz do que brota do ventre desta terra quente.
Leva a colher à boca, o calor sôfrego lambe-se no encovado sorriso e matreiro olhar de quem sabe quantos dias são esta vida. Enquanto a mastigação forma um embolado alimentar, de olhos fechados deixa-se descer o mundo do altar, para todo o tempo há um momento e eis que, ainda que fermente, a temperatura encontra a casca do sobreiro e pedindo-lhe guarida que o frio atiça, este estende-lhe a mão e rodeia-o de cortiça.
Tudo o que a Natureza faz, fá-lo bem feito, a preceito, que o diga o carregado negrume púrpura que escorre por dentro do peito e no rebordo da boca, que comeu o pão que o diabo amassou e, neste caso, o barril maturou.