Artigo de opinião escrito por Manuel Cardoso – Consultor e Escritor
Ainda no século XX, a minha vida profissional disparava quando a de um dos meus melhores amigos de então estava no ocaso e fomos grandes parceiros nesse cruzar das nossas curvas de Gauss: com grande admiração privei de perto com o Dr. João Pessoa Trigo, médico-veterinário municipal experiente e com um enorme savoir-faire dos anos em que, antes, fora político, procurador à Câmara Corporativa, Presidente da Câmara, vida cheia de aventuras que eram uma delícia ouvir. Tal como era uma delícia quando nos convidava (o que era frequente) para os seus almoços e, em especial, dois dos seus momentos sagrados do ano: num dia frio de Janeiro comermos um azedo com couve (um dos must mais secretos e conseguidos no mundo dos enchidos tradicionais), e o almoço das sardinhas assadas, nos seus últimos anos algo clandestino para que em sua casa não se soubesse dos atentados à sua dieta!
Ambas as coisas tinham mais de uma edição (porque havia vários amigos com quem gostava de partilhar esses momentos “únicos”) e, se uma delas era no antigo Montemel, um restaurante de cozinha segura e guardanapos de pano que então existia numa sala de primeiro andar em Macedo, outras eram no Saldanha, de Peredo, e, ainda, no Armando, mais conhecido como O Cinco Coroas, honestíssimos a servir posta, rodeão ou bacalhau mas que, por ordem expressa, nos dias aprazados arranjavam o tal azedo ou as tais sardinhas.
Coisa fundamental para que corressem bem, esses almoços tinham sempre um vinho escolhido. Com o azedo, comido no início do ano em dia de geada severa ou de temporal desabrido, o tinto não era difícil de decidir, um Valle Pradinhos gastava-se em várias garrafas pelos nossos copos. O ano corria, passava-se o mês de Março em que numa pontualidade de cavalheiro ia a nossa casa oferecer um ramo de flores à Mariana, no nosso dia de casados, vinha Maio, em que no dia 28 se sentava no Café Central a oferecer, aos amigos que o iam cumprimentar, uma taça dum Raposeira mergulhado num frappé, e, depois, com expectativa, chegava-se a Junho e às sardinhas.
O seu gabinete ficava no mercado e, logo que a inspecção das caixas em que vinham de Matosinhos lhe revelava, ao seu olho experiente, estarem já pingonas, o recado passava rápido para o dia em que os pimentos, as batatas, o pão e a salada se punham prestes a acompanhar as ditas em local aprazado. Que iriam bem com branco, que iriam bem com tinto, que o melhor seria sangria, talvez um rosé de novidade… até ao ano em que descobriu – e logo partilhou connosco! – que o superlativo seria um espumante e, a partir de então, passámos a ser useiros e vezeiros nos Murganheiras e Távoras-Varosas a fazer par com as sardinhas. Com um enorme sucesso. De tal modo que ainda hoje mantemos o hábito saboroso de assim fazer, haver espumante para as sardinhas, e, sempre que alguém nos pergunta o porquê, relembramos o nosso amigo. Mesmo que as tenhamos assado de modos diferentes, com carvão ou outras brasas, queimadas com caruma e alecrim, o espumante vai sempre bem. Mas…
Nessa época, há mais de vinte anos, não se usava o vinho verde por estas bandas nem, muito menos, o espumante de vinho verde. Essa é uma descoberta recente. Não a do vinhão, em malga a ser sorvida ao comer-se uma sardinha no pão, gesto antigo e experimentado desde a nossa meninice na Póvoa ou num outro arraial minhoto. Referimo-nos a outra coisa.
Não era só o efeito benfazejo do gás, a emulsificar as gorduras aromáticas, que resultara inesperadamente nesse sucesso, nos almoços com o João Trigo: o trincar do pimento com o grão de sal e o azeite excepcional, o sabor da batata cozida com casca e a junção, proporcionada, com o lombo rescendente da sardinha, toda essa mistura na boca, com o picante da cebola, era, de repente, inundada de perfume, arrefecida como uma brisa de Verão por dois golos ou três de malvasia fina, de pinot noir, de chardonnay … até descobrirmos que um loureiro de ano ou reserva, um avesso, um alvarinho, um azal ou um bom vinho de lote … até descobrirmos que o perfume do Minho, o cachão dos seus rios, a maresia e o vento da serra são uma das formas mais perfeitas de se saborearem, em todo o seu esplendor, as sardinhas assadas.
Espumante, frisante, tranquilo com a sua inquietude natural, o vinho verde é, hoje, um dos indispensáveis desde o acender fumegante do assador. Termos acabado de engolir o cocktail de sabores que acompanha a garfada para, logo a seguir, sentirmos a fragância que nos impressiona, vinda do copo e, simultaneamente, do golo que passou na garganta, é captar todo o flavour e sentir todo o prazer das sardinhas assadas.
A todos, votos de um bom Santo António, de bom São João, de bom São Pedro, de boa Santa Bárbara!
Bom Verão, com sardinhas assadas!