Artigo de Opinião escrito por Miguel Gomes- Escritor
O senso comum leva-me a questionar o Norberto se aquele seria o melhor local para estacionar. Está certo que garagem de portas fechadas ou guarda ou não permite entrar, mas mesmo assim, o carro na entrada, o Sol a calcorrear os cumes dos pinheiros mansos, as sombras fugidias sobre as oliveiras, não me deixavam na calmaria de ostentar local à porta de alguém.
O Tua ia-se afogando pelas margens sem escape além do que vislumbravam nas fragas do lado de lá da corrente. Sem carris, o ocre soçobrava no cascalho cuja função era, agora, sem mais nem menos, preparar-se leito de uma barrigada de água parada, onde apenas o orvalho vinha beber restos de reflexos que o céu gravou.
Os últimos passos em liberdade, sei-o agora, foram dados naquela tarde, a bicharada a grasnar e crocitar uma melodia fúnebre, a sombra de um sobreiro que mirava, sozinho, a curva do Douro penteado pelo vinhedo arquitectonicamente esculpido ao olhar marejado de quem o viu, como Torga, solto como um tufo de cabelo agreste de um qualquer vindimador a olhar, de soslaio, a fralda alva do avental de um amor.
Lanchámos algo que os tupperwares guardaram. Para últimos dias de liberdade é irónico não sabermos a que sabiam os conteúdos, mas o silêncio permitiu ser a sobremesa com que, ainda hoje, saboreio as imagens de ti, meu afluente agreste, onde a tarde tórrida, entre odores a travessas oleadas e carris abandonados, permitiu que me banhasse nas tuas águas ágeis. À porta da garagem, alçado o devaneio, pergunto a quem aflora ao portão verde se poderíamos estacionar ali o carro, íamos apenas tirar umas fotografias para um livro. Mentira, havia apenas um sonho que não permita as folhas alvas soluçarem nas levadas, e uma amizade que as laçava em redor de um palpável miradouro sobre a ilusão.
O Tua tem margens que se transpõem e banham o olhar de quem se crê ser Ser. À guisa de um convite para beber de um garrafão ornado de vime, escondidos os cuidados a ter pela senhora do serviço de apoio domiciliário, lá nos ofereceu, a mim e ao Norberto, um copo e algo para bucha, ao que declinamos. O nosso alimento era o último passo a vau sobre um rio que já sabíamos não saber nadar e uma linha centenária cujos passageiros, vultos, se despediam de uma realidade inexistente. Abriu-nos a porta e fomos à varanda da casa por terminar, como se soubesse o nosso anfitrião que o lar é bem longe onde habitamos. Segundo ele, era a ali a mais bela paisagem sobre o Tua, com a água salobra a retornar à nascente e a musgar muros erigidos a sangue, quase, quase a marear no cascalho amarelecido. As pedras da estação saíram, numeradas, para reconstruir o passado vassalado nos quintais de alguém engravatado, e ainda que as fotografias do Norberto falem a verdade no que veio tornar-se o livro Alma Tua, receio que as minhas palavras jamais prestem justiça ao braço no ombro de quem me disse, já com a vida nos lados de lá do rio, “A barragem é lá ao fundo, mas já me chega à garganta”.