Artigo de Opinião escrito por Miguel Gomes- Escritor

– Mas você nunca quis sair daqui? – era a pergunta que muitas vezes lhe faziam e que, nas inúmeras respostas acima da quietude tradicional de quem se habitua a falar com o tempo, em amena cavaqueira nos serões à lareira na companhia do silêncio, soçobrava com um – Eu não sou daqui, de que me adianta sair de onde não sou?

A pandemia tinha trazido, além do isolamento espacial, uma certa distância temporal para quem sempre se habituou a viver a umas dezenas de quilómetros do maior, mais aconchegante e, também, mais confortável em termos de companhia de outros corpos, envoltos muitas vezes numa ausência sofrida de falar com quem tão perto está e, concomitantemente, tão afastado se vê do coração. Era caso para dizer, perto da vista, mas longe do coração. 

No percurso por entre as árvores as botas calcavam com cuidado os ouriços, esfregando-os entre os pés e fazendo saltar as castanhas, libertas de um útero protector, escondido dentro de uma espinhosa redoma. A natureza fez os humanos à sua semelhança, tendo pecado apenas na quantidade de espinhos que dotou os bípedes pensantes.

A jornalista, rendida ao percurso, também a medo pela forma como olhava, de certa forma desconfiada, para a grande cadela serrana de mamas descaídas e chupadas,cuja cabeça negra colocava o olhar à altura da sua cinturae que os acompanhava, nas perguntas da circunstância: oque fazia antes de se mudar, como passava os dias sozinho, será que nunca tinha perdido uma cabra, como era ser um dos últimos habitantes nas serranias, não tinha medo de se perder pelo nevoeiro, entre outras. Pacientemente, o pastor (nós e a mania de termos que atribuir uma identidade a alguém pela profissão ou formação) respondia monossilabicamente, monocordicamente e, noutras vezes, com um sorriso condescendente, quase fraternal, à pergunta que interpretava como ignorância daquilo que a vida ainda não mostrou. 

Quando a jornalista desligou o pequeno gravador digital e o clique do mesmo se sobrepôs ao murmurinho do ribeiro que corria livre por entre as margens esverdeadas, o pastor parou e fitou-a. Havia uma nudez, acima da mudez natural, no olhar que lhe respondeu a todas as perguntas que ela nem sabia ter preparado. Sem guião, estendeu-lhe a mão e convidou-a a passar o ribeiro, pisando com cuidado uma roliça pedra no meio da cristalina corrente.

Na outra margem as botas atolaram-se na lama, as cabras dispersas por aquele caos de blocos ruminavam indiferentes, pé ante pé guiou-a, qual animal tresmalhado, por entre carreiros de urzes e godos.Chegados ao topo daquele cabeço cinzento, com as mãos nos joelhos a ajudarem a caminhada, a jornalista de profissão, mas mulher de coração, estendeu o olhar ao horizonte e o silêncio daquele mar de pedras suspirou-lhee ela entendeu. O pastor, não era mais, nem menos, que o próprio céu.

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