Por: Miguel Gomes – Escritor

Não obstante ser Inverno, é com nostalgia que olho para os dias de Sol, amenos na face, para quem vive acima das nuvens e para quem o transporta no íntimo onde se aquecem os dias que não sabemos amornar.

A chuva caiu inúmeras vezes sem que se esquecessem os pingos de, esparramados no asfalto, torrentarem-se pelas pregas que a vida vai tricotando nos solos, nos edifícios à minha volta, nos litocerâmicos que se desprendem das paredes, nas rugas que aram as faces de pessoas que outrora foram solo fértil para a vida.

Um guarda-chuva pavoneia-se ainda que ferido no orgulho e no forro, iniciado a desprender-se de uma bolbosa plástica extremidade e a vareta, arqueada, assemelhada a um esgar na face da senhora que, entre segurar o saco de plástico das compras, oferecido apenas se o total do talão das compras o permitir, suster a bolsa negra e escamada de uma pele falsa, ao contrário da que o tempo plantou nas linhas de uma vida por mim augurada de pacífica, ainda que o parco conteúdo do saco de compras faça iludir quem de muito anda, mas de pouco vive, e equilibrar no pescoço de lenço cachecolado (nunca sei onde estas modas param ou começam) a vara fria e húmida e a moca de plástico pegajoso que, com o vento, por vezes oscila e lhe atinge o queixo, ainda ela sem queixume.

A vida é um malabarismo constante, em última instância entre os nossos pensamentos. Como entre o Inverno e a recordação de um dia solarengo, de olhos fechados, na nostalgia de se ver chegar o Inverno, novamente.

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